Era uma vez uma civilização que queria dominar a natureza

Guilherme jan 1, 2023

Texto originalmente publicado na plataforma Um Só Planeta

https://umsoplaneta.globo.com/opiniao/colunas-e-blogs/guilherme-bcheche/post/2021/05/era-uma-vez-uma-civilizacao-que-queria-dominar-a-natureza.ghtml

06/05/2021 09h00

Apesar de termos nos distanciado da natureza para nos civilizarmos, isso não nos trouxe mais felicidade

Foto: Getty Images

É com alegria que escrevo para essa plataforma que me enche de esperança, entusiasmo e otimismo. “Um Só Planeta” aguça os meus sentidos. A janela da sala onde trabalho fica na altura da copa das árvores e, de tempos em tempos, desvio o olhar para descansá-los com o balanço das folhas. Hoje, ao escrever, olho pra esse balanço com outros olhos: os de que ali, do outro lado do vidro, há um ser vivo, resistente, dando duro para sobreviver na civilização que criamos. E me imagino, por um instante, numa cidade sem verde, sem árvores, sem os inúmeros fenômenos naturais que observo mesmo que de vez em quando. Não sei você, mas eu não sobreviveria. Seria uma cidade sem vida.

Isso me fez lembrar de um dos textos mais difundidos e populares de Freud, “O Mal-Estar na Civilização”, em que o autor demonstra os vários mecanismos que nós humanos criamos para nos proteger da natureza – não apenas a nossa natureza interna, relacionada ao nosso inconsciente, às nossas pulsões, mas também à externa, ligada ao meio ambiente.

Nesse texto, escrito em 1930, há mais de 90 anos, Freud afirma que a civilização e a cultura são produções humanas em busca de felicidade e de defesa contra a natureza. Historicamente, nos civilizamos para nos proteger do que o pai da psicanálise chamou de “mundo externo” e atacamos a natureza para nos defender. O problema começa justamente quando continuamos na direção de tentar dominá-la.

Freud diz que “a palavra ‘civilização’ designa a inteira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela dos nossos antepassados animais, e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si”. Ou seja, ao nos civilizarmos, nos afastamos da natureza, fazendo o ser humano se tornar “uma espécie de deus protético”.

Ainda de acordo com Freud, reconhecemos e valorizamos a cultura de um lugar “quando vemos que nele se cultiva e adequadamente se providencia tudo o que serve para a exploração da Terra pelo homem e para a proteção dele frente às forças da natureza; em suma, tudo o que lhe é proveitoso. Em tal país, os rios que ameaçam inundar as terras têm seus cursos regulados e suas águas são conduzidas por canais até os lugares que delas necessitam. O solo é cuidadosamente trabalhado e plantado com a vegetação que lhe for apropriada, os tesouros minerais das profundezas são extraídos com diligência e usados na fabricação dos instrumentos e aparelhos necessitados. Os meios de transporte são abundantes, rápidos e confiáveis, os animais selvagens e perigosos se encontram exterminados, e prospera a criação daqueles domesticados”.

Apesar de termos nos distanciado da natureza para nos civilizarmos, isso não nos trouxe mais felicidade. O mal-estar de que tanto tememos permanece conosco, faz parte da natureza que nos habita. Pelo contrário, esse mal-estar talvez esteja em dimensões maiores que antes, já que não temos mais o meio ambiente como aliado.

pandemia que se iniciou em 2020 e levou o mundo a parar abre espaço para algumas reflexões sobre a importância da conexão com o meio ambiente, o mundo natural. Depois de alguns milênios civilizatórios, estamos diante de uma oportunidade única de repensar nossa relação com o planeta e incluí-lo na nossa produção cultural que tanto prezamos. Meio ambiente e cultura não são excludentes. São complementares.

Há mais de 90 anos, época do lançamento da obra de Freud que cito, Nova Iorque era a maior cidade do mundo com um pouco mais de 10 milhões de habitantes e a primeira fábrica de automóveis do Brasil tinha acabado de ser criada. Hoje, a maior região urbana do mundo, Tóquio, tem cerca de 30 milhões de habitantes e nossa tendência é, cada vez mais, de nos isolarmos para nos protegermos.

Contei os dias para assistir ao lançamento de “O Ano em que a Terra Mudou”, publicado esse mês na Apple TV. O documentário retrata exatamente a mágica que aconteceu quando nós, humanos, reduzimos nossas atividades produtivas, diminuindo, assim, a quantidade de gás carbônico emitida, o volume e frequência dos barulhos, a aglomeração nos mares e praias, e por aí vai… É emocionante ver a alegria e o brilho nos olhos de indianos urbanos que, pela primeira vez na vida, conseguiram ver o topo dos Himalaias graças à redução drástica de poluição do ar; de agricultores de arroz na Índia que decidiram fazer um acordo com os elefantes que comiam suas plantações ao criar uma área plantada para colheita e outra, só para os elefantes; de tartarugas que não precisaram mais esperar o esvaziamento das praias para sua desova.

E se, além de pacto com elefantes, fizéssemos um pacto também com os rios, os oceanos, os bichos, as plantas, a terra, as montanhas? E se as empresas, muitas das quais usam as matérias-primas naturais, tivessem critérios tão importantes ligados à preservação do planeta, além da receita e do lucro? E se eu, você, todos nós, tivéssemos cotas para reduzir o lixo que produzimos, a quantidade de viagens que fazemos? E se entendêssemos de uma vez por todas que somos responsáveis pelo nosso mal ou bem-estar e não é o consumo desenfreado nem a tentativa de soberania sobre a natureza que irá aplacar o nosso desconforto, a nossa angústia, a nossa ansiedade?

A era da tentativa de domínio sobre a natureza já era. Assim como na psicanálise precisamos fazer um pacto com nossos próprios sintomas para conseguir transformá-los, também devemos regular nossa relação com o meio ambiente para que a ausência ou a escassez dele não nos leve a um mal-estar desnecessário.

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