As organizações Precisam ser Reinventadas

Guilherme jan 1, 2024

Um book review do livro “Reinventing Organizations”, de Frederic Laloux

Guilherme Bcheche_As organizações Precisam ser Reinventadas

Esqueça cargos e responsabilidades rígidas, tomada de decisão concentrada em poucos, pirâmide hierárquica, demissões frequentes, muito planejamento e plano de carreira. Esqueça, inclusive, o RH como a área que concentra as políticas de pessoas, o recrutamento e o desenvolvimento organizacional. As organizações Teal estão aí para mostrar que existe uma forma muito mais orgânica, sistêmica e evoluída de se organizar, criar um ambiente verdadeiramente atraente para as pessoas e prosperar.

Não é recente o meu interesse por assuntos relacionados à prática organizacional. Nos quase cinco anos como consultor na McKinsey e principalmente depois disso, apoiando líderes ao redor do mundo em seus desafios organizacionais, minha atenção esteve sempre deslocada para como as pessoas se relacionam consig mesmas, com as organizações e dentro delas.

Uma pergunta que me serviu de guia é a seguinte: “Como o funcionário de uma empresa, com toda a complexidade inerente a um ser humano, consegue trazer a sua inteireza para o trabalho?”

Em 2017, tive o prazer de ler o livro “Reinventing Organizations”, de Frederic Laloux, um ex-colega na McKinsey. Sou desses que gostam de livro físico, que grifa as partes que mais me chamam a atenção. Se fosse seguir a minha própria regra, esse livro estaria inteiramente grifado.

O livro é, ao mesmo tempo:

  1. (a)  uma pesquisa sobre como as organizações podem se humanizar cada vez mais, tornando-se plataformas de evolução física, emocional e espiritual nos âmbitos individual e coletivo;
  2. (b)  um mapeamento de organizações que possuem um modus operandi diferente, que colocam o ser humano no centro da estratégia;
  3. (c)  um chamado para tratar a saúde mental nas empresas, dando ao indivíduo e à sua singularidade o direito de ser único e poder viver sua autenticidade dentro da companhia;
  4. (d)  um convite a líderes de grandes, médias e pequenas empresas a refletirem sobre formas mais naturais – e, portanto, menos industriais – de promover a interação entre a organização e os colaboradores e criar um ambiente próspero, tanto do ponto de vista financeiro, como do ponto de vista social.

Nesse contexto, espero, sinceramente, que esse “book review” sirva de incentivo a líderes, executivos, consultores e qualquer pessoa que genuinamente entende as organizações como importantes plataformas de desenvolvimento humano e evolutivo para (re)pensarem o desenvolvimento organizacional e suas práticas.

Boa leitura!

Guilherme Bcheche_As organizações Precisam ser Reinventadas

1. INTRODUÇÃO

Com base na Teoria Integral de Ken Wilber, que escreve o prefácio do livro, “Reinventing Organizations” mapeia organizações que há anos vêm fazendo tudo diferente do que costumamos entender como a forma correta de empresas criarem valor e prosperarem. São empresas de diferentes nacionalidades, origens e setores: AES, BSO/Origin, Buurtzorg, ESBZ, FAVI, Heiligenfeld, Holacracy, Morning Star, Patagonia, RHD, Sounds True e Sun Hydraulics.

Essas organizações colocam seu propósito acima de tudo e estão centradas no ser humano. Valorizam não apenas o raciocínio lógico, mas também as emoções e a intuição, reconhecendo que há cérebros – obviamente menores – também no coração e no estômago.

A motivação de Laloux para desenvolver a pesquisa que deu origem ao livro tem origem nos seguintes questionamentos:

  • §  A pirâmide hierárquica parece desatualizada, mas que outra estrutura poderia substitui-la?
  • §  Em uma empresa, a tomada de decisão não deveria ficar restrita a apenas alguns superiores. Mas promover essa mudança não seria uma receita para o caos?
  • §  Podemos encontrar maneiras de lidar com promoções e aumentos salariais sem politicagem?
  • §  Como podemos ter reuniões produtivas e edificantes, em que falamos a partir dos nossos corações e não dos nossos egos?
  • §  Como podemos tornar o propósito central em tudo o que fazemos e evitar o cinismo que muitas vezes inspiram as declarações de missão altivas?

2. A TEORIA INTEGRAL E AS ORGANIZAÇÕES TEAL

Para entender a abordagem do livro, é importante explorar alguns aspectos da Teoria Integral. Ela foi criada por Ken Wilber nos anos 70, com a publicação do livro “Spectrum of Consciousness”, e se solidificou no início dos anos 2000 com a publicação de “Uma teoria de tudo”. Com a Teoria Integral, Wilber ambiciona consolidar em um único lugar várias teorias sobre campos diversos do desenvolvimento humano, como ciência, religião, filosofia e psicologia.

Um dos frameworks mais famosos da Teoria é o Integral Map, uma ferramenta que usa cores para mapear os diferentes níveis evolutivos e de consciência do ser humano. Cada cor – e, portanto, cada nível evolutivo – tem características muito próprias relacionadas a aspectos como a forma de encarar o mundo e as emoções (imagem 1).

Pois bem. A primeira coisa que Laloux faz no livro é um paralelo entre esse framework e as organizações. Da mesma forma que Ken Wilber define parâmetros para cada nível evolutivo relacionado ao ser humano, Laloux o faz para as corporações. Sob o ponto de vista evolutivo, ele define a rapidez com que as mudanças aconteceram dentro das empresas. Foram 50 mil anos para a primeira alteração de cor – e, consequentemente, de

nível evolutivo. Em contrapartida, pelo menos cinco novas cores apareceram nas últimas décadas. Atualmente, coexistem pelo menos três delas: âmbar, laranja e verde.

O nível de consciência humano tende para o próximo nível – a cor teal, assim mesmo, sem tradução por ser uma mistura de azul, verde e cinza – e o mesmo acontece com as organizações. E é sobre empresas que estão fazendo essa transição que se voltam todas as atenções do autor (imagem 2).

Laloux defende que interpretamos mal quando acreditamos que níveis evolutivos mais avançados são melhores que os antecessores. Seria mais correto pensar que são formas mais complexas de lidar com o mundo.

O autor descreve brevemente a correspondência das cores da Teoria Integral quando aplicadas às organizações.

Mover-se para níveis de consciência mais altos é um grande desafio, que requer coragem para soltar a lente antiga e colocar uma lente nova à frente dos olhos. É um processo incerto, misterioso, sem garantias nem ponto de chegada. Não há como alguém ser envolvido usando apenas a consciência. E essa é uma verdade difícil para coaches e consultores. Sua tarefa passa a ser a de criar as condições e o ambiente para que as pessoas avancem aos estágios mais complexos. Assim como no processo psicanalítico, o consultor ou coach estará sempre na retaguarda e não na dianteira, a um passo atrás do líder ou da organização que está apoiando.

O mesmo é válido para a relação dos líderes e suas organizações. Um aspecto importante sobre o grau de complexidade com que as organizações estão dispostas a encarar o mundo e a si mesmas é que não é possível que elas estejam à frente de seus próprios líderes. São eles que definem como as coisas funcionam e, portanto, o quanto de complexidade querem absorver. Em outras palavras, não há organizações mais evoluídas que seus próprios líderes. As primeiras seguem os segundos.

3. Organizações Teal

Assim como acontece no processo evolutivo pessoal, as organizações só alcançam o nível Teal quando deixam de se identificar com a necessidade de controlar tudo. Isso não é fácil. Significa abrir mão de se manter sedutora, atraente, “sexy”. Em um paralelo com a sexualidade masculina, seria abrir mão de se manter em uma constante ereção. Nesse processo, abrimos lugar para regiões mais profundas de nós mesmos e para a sabedoria dos outros. Abrimos mão do medo e da ameaça e partimos para uma visão de mundo baseada na abundância. Deixamos de lado a opressão da opinião alheia e seguimos fiéis ao que acreditamos. Passamos a focar mais nos pontos fortes e potenciais e menos

nos erros ou no que está faltando. Usando um ditado comum: começamos a ver o copo meio cheio em vez de nos concentrarmos na metade vazia.

Não existe organização sem pessoas. Isso significa que toda a transformação necessária para se chegar a uma organização Teal deve acontecer com as pessoas e por meio delas.

O nível Teal define também como encaramos problemas e desafios. Aqui, os obstáculos são vistos como oportunidade de crescimento e evolução. Deixamos de lado, mesmo que estejam presentes, a raiva, a vergonha, a culpa e todos esses sentimentos que nos desconectam dos outros, do que estamos fazendo e de nós mesmos.

Uma outra mudança relevante é a substituição da dicotomia “ou isso ou aquilo” pelo pensamento mais complexo do “isso e aquilo”. Uma abordagem mais difícil, mas com certeza mais alinhada com a vida contemporânea. Esse novo paradigma é um convite para que deixemos o ego de lado e com ele as comparações de performance, a separação entre vida pessoal e profissional, as emoções e os sentimentos da racionalidade.

Todos temos um propósito comum: evoluir. A melhor maneira de alcançar a evolução é buscando a melhor versão de nós mesmos, deixando a vida fluir através de nós. Identificar esse “chamado” evolutivo é fundamental para estarmos alinhados com o propósito da vida e levá-lo para nossas organizações.

Os fundadores de organizações Teal referem-se com frequência às suas empresas como sistemas vivos. Muito diferente das referências que costumamos escutar quando conversamos sobre os sistemas empresariais – máquina, família, relógio.

Ao investigar um pouco mais a fundo como essas organizações funcionam, são identificados três elementos principais: self management, wholeness and evolutionary purpose. Em bom português: autogerenciamento, inteireza (“integridade” na versão traduzida para o português do livro),  e propósito evolutivo.

Self Management

Como sistemas vivos, organizações Teal respeitam e acolhem a complexidade. Entendem que é necessário flexibilidade para funcionar.

A tomada de decisão, por exemplo, não é concentrada nas mãos do conselho ou de executivos seniors e também não tem a pretensão de organizar o caos, como poderíamos imaginar. Nesse caso, é comum verificar um processo de aconselhamento e recomendações. O caso da AES, empresa multinacional de energia, ilustra bem o conceito. Lá, quanto maior a complexidade e o impacto da decisão, mais pessoas devem ser envolvidas para o aconselhamento, incluindo o CEO. A regra é envolver pessoas com conhecimento para aconselhar e aquelas cujo trabalho pode ser afetado pela decisão tomada.

Nessas empresas, a complexa teia de relações informais é assumida como estrutura organizacional. Essa seria a estrutura de uma das empresas estudadas por Laloux, a Morning Star, empresa americana de dados e análises de investimentos.  Explicando na prática o que acontece por lá:

Em algumas dessas organizações, os papéis, assim como a governança, são definidas dentro dos times. Em muitos casos, não existe o cargo de gerente e nem estrutura

hierárquica e, portanto, não há promoções. O que ocorre é que o aumento da experiência e da maturidade pode trazer mais responsabilidades às pessoas.

Nesse contexto, esqueça a palavra empoderamento, que tem sido muito utilizada por líderes empresariais e institucionais para expressar sua generosidade com os níveis organizacionais mais baixos. Empoderar pressupõe que alguém no topo da pirâmide precisa ser sábio ou nobre o suficiente para ceder parte do seu poder. E a pergunta que Laloux lança é: e se não precisássemos de empoderar ninguém já que, por premissa, todos têm poder?

São muitas as práticas de self management nas organizações Teal. O quadro abaixo mostra como elas se diferem das práticas “laranja”, a mais comum atualmente nas empresas.

O maior exemplo de autogerenciamento citado no livro é o da Buurtzorg, uma organização holandesa que tem como missão melhorar a qualidade de vida de doentes e idosos atuando em vizinhanças.

Historicamente, a Holanda tem enfermeiros de bairro como parte do seu sistema de saúde. A partir daí, surgiu a ideia de agrupar esses enfermeiros de tal modo que um possa cobrir o outro por motivos de doença, férias ou impossibilidade de trabalhar. Mais que isso: seria possível balancear melhor a quantidade de enfermeiros por região, dependendo do estado de saúde das pessoas atendidas num determinado perímetro.

E assim surgiram organizações para colocar ordem no trabalho. Sob a ótica integral, eram organizações “laranja”, que precisavam escalar rapidamente além de reduzir custos, operar por especialidades, premiar os melhores. Mas houve uma completa insatisfação, tanto dos enfermeiros como dos pacientes. A cada dia um enfermeiro diferente entrava na casa do paciente sem saber muito bem do seu histórico. Cada enfermeiro tinha até 80 pacientes para tratar.

Nesse contexto surgiu a Buurtzorg – que significa literalmente “cuidado da vizinhança”, em holandês. Diferentemente de todas as outras organizações de apoio a comunidades e bairros, na Buurtzorg os times de 10 a 12 pessoas não têm liderança e cada equipe cuida de cerca de 50 pacientes. O grupo se auto gerencia: juntos, decidem sobre férias, escala, aumento da equipe ou mesmo sobre assuntos mais estratégicos, como parcerias com farmácias e médicos locais. Em casos de decisões mais delicadas, o time pode solicitar a ajuda de um facilitador ou coach para apoiar na condução das decisões.

Em 2009, auditada pela Ernest & Young, a Buurtzorg foi reconhecida por ter atingido resultados impressionantes, como a redução de 40% das horas de cuidado decorrente do aumento da capacidade de entrega dos times. A consultoria estimou que, se todo o sistema de cuidados da saúde funcionassem com a Buurtzorg, haveria uma economia de cerca de 2 bilhões de euros para o país.

Esse é apenas um de vários exemplos que Laloux traz de como as organizações autogerenciáveis estão lidando com a complexidade da estrutura organizacional no momento em que abrem mão das relações de comando e controle para dar espaço à confiança.

Wholeness

Laloux parte do pressuposto que, historicamente, as organizações usam máscaras para não mostrar suas vulnerabilidades, suas fraquezas, suas dúvidas. E o mesmo acontece com os executivos dessas organizações. As características culturalmente associadas ao masculino, como poder, força e virilidade, são as mais valorizadas e se sobrepõem às características ligadas ao feminino, como cuidado, questionamento e reflexão. O lado emocional precisa ficar de fora e o espiritual, bem distante, para não interferir na performance.

Por que deixamos parte de nós quando vamos ao trabalho? Por que a cultura das empresas nos pede isso o tempo todo? Observando as empresas Teal, Laloux percebe que elas se tornaram uma plataforma de “wholeness”, de inteireza das pessoas que interagem com elas ou dentro delas. Durante suas pesquisas, o que mais escutou foi “aqui eu sinto que eu posso ser completamente eu mesmo”.

Ser inteiro no trabalho é colocar a serviço de si mesmo e da organização todo o potencial, a criatividade e a energia possíveis. Quem teria alguma objeção a isso? Esse é, inclusive, um dos pontos de atenção levantados pelos pesquisadores de Harvard Robert Kegan e Lisa Lahey quando dizem que a energia gasta nas empresas para esconder as fraquezas poderia estar sendo aplicada em levar as pessoas – e consequentemente a organização – ao seu potencial máximo.

O problema começa, no entanto, quando as organizações se deparam com as consequências de ter que lidar com as questões individuais que surgem a partir do convite à inteireza: ocorrências emocionais são constantes, assim como acontece no ambiente familiar. Por isso, é preciso que líderes e funcionários estejam dispostos a fazer ajustes constantes para incorporar o “wholeness” na cultura organizacional e fazê-lo funcionar. 

A Patagônia, empresa californiana de roupas, decidiu ter um jardim de infância dentro da sua sede. Os sons de bebês chorando e crianças brincando fazem parte do pano de fundo do escritório. Vira e mexe, há mães amamentando seus bebês dentro de salas de reunião. A Sounds True, um negócio criado para disseminar sabedorias espirituais, permitiu a entrada de bichos de estimação: no momento da pesquisa de Laloux, havia 20 deles espalhados pelo escritório de 90 pessoas. Uma proporção de 1 pet para cada 4,5 funcionários.

Depois de um ano pandêmico em que todos nós tivemos que trabalhar no ambiente da casa, essas cenas não parecem tão absurdas. No entanto, não podemos perder de vista que práticas como essa, que incentivam os funcionários a estarem inteiros no trabalho, está muito distante das condutas organizacionais vigentes.

Em tempos de cuidado com a saúde mental dentro das organizações, “estar inteiro” é, sem dúvida, um pilar fundamental para aumentar o nível de energia, entrega, presença e fluxo, e diminuir o nível de estresse, da preocupação, da sensação de estar com o corpo em um lugar e a cabeça em outro, de ter o coração escondido. As relações se humanizam e sentimentos positivos passam a circular com mais frequência.

O conceito de “wholeness” não para por aí. Laloux pesquisou a empresa RHD (Resources for Human Development), uma ONG com sede na cidade da Filadélfia que tem como objetivo levar serviços de saúde mental ao subúrbio da cidade. Uma das principais alavancas culturais da RHD é a criação de espaços seguros de trabalho, que começam com a consciência coletiva de que nossas palavras e ações são as grandes responsáveis por criar ou não um ambiente de trabalho seguro. A empresa, que tem mais de 4 mil funcionários e serviços em 14 estados norte-americanos, tem registrado um crescimento de 30% e uma receita de 2 bilhões de dólares ao ano. 

A RHD não é a única das empresas estudadas a cultivar práticas que impactam na boa saúde mental de seus funcionários. A alemã Heiligenfeld criou espaços de reflexão coletivos onde seus 350 colaboradores passam mais de uma hora por semana discutindo tópicos pré-definidos, como resolução de conflitos, burocracia ou mindfulness. De forma similar, a holandesa Buurtzorg adotou a prática do peer coaching com duas normas bem claras: que apenas perguntas abertas possam ser feitas e que haja um ambiente convidativo para a escuta profunda e a exposição de vulnerabilidades. Na Sounds True, há um alarme diário que convida as pessoas a parar suas tarefas por 15 minutos para meditar.

O livro “Reinventing Organizations” traz outros vários exemplos de como essa inteireza é praticada nas empresas. Em todos eles, o conceito de “trust”, ou confiança, parece ser fundamental. Onde há confiança, há a possibilidade de se viver os conflitos como parte de um aprendizado individual e coletivo, que ajusta as interações e permite que as relações se renovem. Segundo Laloux, uma forma de entendermos quem somos e quais são nossos limites é através dos conflitos que vivemos – eles nos ensinam sobre nós mesmos. Sem conflito, corremos o risco de nos acomodarmos ou nos protegermos demais. E, nos dois casos, nós perdemos a oportunidade de sermos autênticos.

Para além das práticas gerais de inteireza que as empresas inovadoras pesquisadas por Laloux demonstram, há também uma série de mudanças nos processos de RH. Essas organizações fizeram uma revisão completa nos processos de recrutamento, onboarding, avaliação, remuneração e demissão.

Apesar de já observarmos algumas dessas práticas em inúmeras empresas – a ausência de um “job description” definido, a entrevista de recrutamento feita por futuros colegas de trabalho, programas de rotação de função para conhecer melhor a empresa –, o que está por trás dessas mudanças nas empresas Teal é a tentativa de dar menos voz ao ego. É verdade que sem ego não existimos, já que é ele que nos protege. No entanto, é ele também que, quando superestimado, nos impede de acessar nossos desejos e formar maneiras genuínas e autênticas de conduzir a vida. Ao dar ao ego um lugar com limites, as organizações Teal abrem espaço para que a potência individual possa se manifestar, o que inclui o outro lado da moeda: vulnerabilidade e incertezas.

Evolutionary purpose

A tradução do título seria algo como “propósito evolucionário”, ou melhor, “propósito evolutivo”. O que vem a ser esse conceito, tão importante e presente nas organizações Teal? Para explicar essa característica, Laloux usa como contraexemplo Jack Welch, um dos poucos líderes de empresas a se tornar celebridade. Jack Welch fez a GE (General Electric) atingir patamares inimagináveis de sucesso financeiro. No espectro cromático da Teoria

Integral, tanto Jack como a GE estariam na faixa laranja. O título do livro que Jack escreveu depois de se aposentar reforça as razões de enquadrá-lo nessa cor: “Winning”, ou seja, Ganhar ou Ganhando. A primazia do ganhar é o que define a maioria das práticas profissionais da atualidade, que parte do pressuposto que há uma competição a ser vencida, um mercado a ser conquistado, um crescimento a ser atingido. As startups estão aí para mostrar que, sob o ponto de vista de ambição, nada mudou no mainstream. Pelo menos por enquanto.

Organizações – e líderes – que precisam ganhar, têm o medo no centro de suas emoções. De acordo com a psicanálise, todo medo é, no fim, medo da morte. Para essas organizações é a autopreservação que importa. E isso acaba tendo consequências em todas as esferas da empresa. Gerentes tentando preservar suas unidades de negócio e garantir mais influência na tão importante política interna. Mais budget, mais resultados, mais reconhecimento, mais talentos passam a ser perseguidos de forma obsessiva.

É o ego dizendo “você tem que vencer”, “você não pode morrer”. E como resposta a essa ordem, só há uma saída: aumentar receita e marketshare.

Mas há outra maneira de ver tudo isso. E as organizações Teal estão aí para mostrar. Elas trocaram as antigas perguntas por outras como “O que é o meu/nosso chamado?”, “O que verdadeiramente vale a pena conquistar?”, “O que o meu/nosso propósito nos convoca a fazer?”.

Um belo exemplo é o que Jos de Blok, fundador da Buurtzorg, faz quando os competidores ligam para saberem sobre a sua fórmula secreta: ele os convida a copiar todo o seu método, convicto de que o que faz a diferença ali não é a metodologia, mas o propósito, que segue evoluindo.

O propósito está inclusive acima do lucro. Obviamente o lucro é necessário também para as organizações Teal. Mas não é o principal. A ditadura do “mais e mais lucro” foi substituída por “retorno justo e propósito”.

Yvon Chouinard, fundador e dono da Patagônia, é um exemplo de alguém que colocou o propósito à frente do negócio. Ele começou fazendo instrumentos de escalada que não destruíam as rochas e acabou  construindo uma das marcas de roupa mais admiradas do mundo, com faturamento de mais de 500 milhões de dólares.

Em organizações que valorizam o propósito evolutivo, a tomada de decisão também é diferente. Vistas como sistemas vivos, essas organizações têm seus propósitos próprios, que precisam ser escutados e considerados a cada decisão estratégica feita. Os líderes da Buurtzorg, FAVI e Holacracy, por exemplo, entenderam que o propósito da organização evolui, muda com o tempo. Isso dá a essas empresas a liberdade de se manterem alinhadas com seus chamados evolutivos e fazer as mudanças de acordo com eles.Abrir um espaço reflexivo para escutar esse propósito evolutivo é fundamental para que ele possa se manifestar. Uma prática um pouco esotérica, mas efetiva, praticada pela Sounds True é, em reuniões estratégicas, deixar uma cadeira vazia, a cadeira que

representa a própria organização e seu propósito evolutivo. Qualquer membro da reunião pode evocar o que o “ser” que habita essa cadeira pensa ou sente com relação ao que está sendo dito. E, assim, os encontros, principalmente os estratégicos, passam a ter uma voz adicional: a voz da própria empresa, interpretada por qualquer um de seus membros.

No contexto do propósito evolutivo, a estratégia também é vista como um processo orgânico. Em organizações tradicionais, a estratégia é normalmente definida pelo top team e, a partir de imensos documentos que muitas vezes são construídos pelas consultorias estratégicas, ela é cascateada para o restante da organização.

As organizações Teal, por sua vez, olham para esse tema de uma forma mais orgânica, em que a estratégia não é definida em um dado momento do ano, mas durante todo o tempo, num processo de inteligência coletiva que leva em consideração a visão, a opinião e o sentimento de todos. De forma similar, nenhuma dessas empresas têm metas definidas de cima para baixo (o que chamamos de top-down), entendendo que a existência de metas é um problema por três diferentes motivos:

  1. Elas pressupõem que podemos prever o futuro
  2. Afastam as pessoas de motivações pessoais para executar o seu trabalho
  3. Limitam a nossa capacidade para encontrar novas possibilidades

Como mostra a figura abaixo, vários outros aspectos práticos são influenciados pelo propósito evolutivo das organizações Teal.

À primeira vista, pode parecer que essas organizações estão deixando seus barcos à deriva, sem rumo nem direção. Mas é exatamente aí que elas se diferenciam em como enxergam a si mesmas e o mundo: através de uma lente que diz que a vida é tão complexa e incerta que é melhor navegar de acordo com essa premissa do que com a de que tudo pode ser controlado ou previsto. Até 2019, isso talvez parecesse uma insanidade para empresas tradicionais. A partir de 2020, com o surgimento da pandemia, é possível ver essas organizações com recursos

valiosos para lidar com tamanha imprevisibilidade. E já dá pra imaginar o quanto elas foram capazes de se adaptar aos novos tempos.

4. Conclusão

A essa altura, você pode estar pensando que “isso é pra poucos, pra quem tem sorte” ou talvez “olhar essas empresas e entender como elas fazem é fácil. Quero ver vir aqui, sentar na minha cadeira, viver a minha vida e dizer que é possível ser tão permissivo assim”.

Eu também pensei um pouco sobre isso. E tive reações semelhantes. A verdade é que, depois de muito refletir, entendi que a pesquisa de Laloux não diz, em nenhum momento, que todas as organizações têm que ser assim. Que isso é certo e aquilo é errado. Ao contrário: entendo pelo livro que evolução é uma questão de escolha.

E para aqueles que se sentiram tocados de alguma forma pelas ideias e provocações, um próximo passo nessa jornada de investigação e busca talvez faça sentido. Até porque uma coisa é certa e está colocada no final do livro de forma categórica: uma mudança nessa profundidade só é possível se os líderes da organização estiverem genuinamente comprometidos com ela. E terão que enfrentar os mais difíceis obstáculos para tamanha transformação.

Uma recente pesquisa da McKinsey mostra que algumas dessas práticas já estão sendo repensadas. É o caso da cultura de performance, voltada cada vez mais para os times e menos para os indivíduos. Nessa pesquisa, consultores mostram o quanto o coletivo deve estar acima do individual para se atingir resultados mais expressivos – tangíveis e intangíveis.

Há apenas dois anos, era inimaginável trabalhar com o filho no colo numa grande corporação tradicional. Hoje, num mundo pandêmico, essa e outras inúmeras cenas se tornaram condições de trabalho. Pensando num mundo pós-pandêmico, em que estratégias, estruturadas, sistemas e processos estão sendo repensados, rever a cultura organizacional de forma radical para que seja mais genuína com as necessidades emocionais do ser humano ainda é uma opção. Amanhã pode ser uma condição.

REFERÊNCIAS 

Darino, Lucia & Johnson, Christine (2021). From me to we: the next shift in performance management. McKinsey & Company. https://www.mckinsey.com/business-functions/organization/our-insights/the-organization-blog/from-me-to-we-the-next-shift-in-performance-management

Kegan, Robert & Lahey, Lisa Laskow (2016). An Everyone Culture – Becoming a Deliberately Developmental Organization. Harvard Business Press.

Laloux, Frederic (2014). Reinventing Organizations: A Guide to Create Organizations Inspired by the Next Stage of Human Consciouusness. Nelson Parker.

Laloux, Frederic (2017). Reinventando as Organizações: Um Guia para Criar Organizações Inspiradas no Próximo Estágio da Consciência Humana. Editora Doyen.

Wilben, Ken (2007). Espectro da Consciência. Editora Cultrix.

Wilber, Ken (2008) A Visão Integral: Uma Introdução à Revolucionária Abordagem Integral da Vida, de Deus, do Universo e de Tudo Mais. Editora Cultrix.

Wilber, Ken (2017). Uma Teoria de Tudo. Editora Cultrix.

Compartilhar
Facebook Twitter LinkedIn