Minha mãe e a mãe natureza: um adeus à mulher que me ensinou sobre o infinito

Guilherme jan 1, 2024

A grande missão da natureza, espécie por espécie, é conseguir transmitir aos seus descendentes, sejam eles quais forem, a capacidade de sobreviver, crescer e perpetuar

26/05/2023 07h00

Janete Rozenbaum Bcheche, falecida em 28/04/2023 — Foto: Arquivo pessoal

Foi numa terça feira que me despedi de você. Entre várias idas a Belo Horizonte para te visitar, me debrucei sobre a sua cama, coloquei as mãos nas suas pernas, fechei os olhos e recitei o “Shemá Israel” como fazia minha avó, sua mãe, antes de dormir. Eu disse que te amava e que voltaríamos a nos ver na semana seguinte. Essa foi a nossa despedida depois de 4 décadas convivendo com a joia preciosa que você é.

Você foi embora aos poucos, mãe, preparando todos nós para suportarmos a sua ausência já que sua presença marcava o tempo e o espaço com muitos predicados da vida, que sempre vibrou forte em você: a alegria, a intensidade, a beleza.

No dia do seu enterro, entre tantas falas de conforto que recebi, uma me marcou especialmente, vinda da minha tia paterna. Ela, que perdeu o pai aos 20 anos, a mãe aos 30 e depois 2 filhos, disse que eu me comunicaria com você, mas que era preciso perceber as sutilezas e a transitoriedade na natureza. Numa flor que aparece de repente, num pássaro que se aproxima, no movimento de uma árvore.

Ao longo da sua existência, você fez da transmissão a sua missão. Foi o que meu irmão sabiamente pontuou durante o “Shiva”, os sete primeiros dias de luto em que tivemos a oportunidade de começar a entender e sentir o seu legado. Incansavelmente, você exerceu a impossível tarefa de ensinar, transmitir o que seria de grande valor individual, marca da singularidade de cada um de nós, seus filhos. Década atrás de década, você teve a coragem de se dedicar a essa transmissão. E já no final da vida, chegou a enunciar o desejo que soube sustentar durante tanto tempo: “nasci para ser mãe, essa é minha missão”.

Essa também é a grande missão da natureza. Espécie por espécie, planta por planta, animal por animal, conseguir transmitir aos seus descendentes, sejam eles quais forem, a capacidade de sobreviver, crescer e perpetuar. Você é natureza, mãe. Lutou bravamente contra toda doença que se aproximou, já que sua missão, a transmissão, precisava se cumprir. Pra mim, você é pura luz, que brilhou desde o momento em que eu nasci. Uma mulher solar, com muitas características de uma leoa. Que amava a lua – mais que o sol – e o dia. O céu e o mar. A terra e as estrelas. Uma mulher urbana, mas intuitiva e instintiva como a natureza.

Isso me fez lembrar de um belíssimo texto que Freud escreveu em 1916 chamado “A transitoriedade”. Nele, Freud diz que “é incompreensível que a ideia da transitoriedade do belo deva perturbar a alegria que ele nos proporciona. Quanto à beleza da natureza, ela sempre volta depois que é destruída pelo inverno, e esse retorno bem pode ser considerado eterno em relação ao nosso tempo de vida. Vemos desaparecer a beleza do rosto e do corpo humano no curso de nossa vida, mas essa brevidade lhes acrescenta mais um encanto. Se existir uma flor que floresça apenas uma noite, ela não nos parecerá menos formosa por isso.”

A beleza do seu rosto e do seu sorriso se dissolveram, mas não a da sua existência. Nos duros dias que vieram depois da sua partida, assisti ao filme “A culpa é das estrelas” que conta a história de uma adolescente com câncer e seu amor por outro jovem também doente, os dois em fases terminais. Em um momento do filme, ela, Hazel, fala de matemática, uma matemática distante das contas e bem próxima do que vemos na natureza. Racionalmente, entendemos o infinito quando pensamos que a contagem dos números chamados naturais leva ao infinito. Mas também há um infinito, mesmo que transitório, entre o 0 e o 1, o 1 e o 2, o 2 e o 3 e assim por diante. Não sei em qual intervalo está nosso infinito, mas sinto ele todos os dias. Você está na força que mantenho pelas manhãs, pra levantar da cama e ir praticar esportes. Você me ajuda a escolher as frutas na banca da feira, você me faz cantar para os males espantar. É também você que continua me lembrando das datas importantes e não me deixa me perder nos meus pensamentos. Não foram só genes que herdei de você, mãe, que podem ser vistos no dedão do pé redondo e no sorriso largo. Também herdei a sua inquietude, o seu gosto pelo bom e pelo belo, o seu prazer e a sua alegria de cantar.

Desde a partida da sua mãe, há 14 anos, você começou a me ensinar, de forma mais explícita, sobre a transitoriedade da vida. Naquela época, curiosamente, você quis garantir seu espaço no cemitério ao lado do dela, prática muito pouco comum. Com toda a praticidade que era uma marca registrada do seu estilo, você começou a falar o quanto não gostaria que sua liberdade fosse cerceada pela velhice. Você escolheu o rabino que faria a cerimônia do seu enterro e disse que poderíamos ficar tristes pela sua partida, mas não por muito tempo. Você teve pressa, queria aproveitar “os momentos que não voltam mais” e, ao mesmo tempo, garantir o infinito da sua existência.

Joia é o seu nome no judaísmo. Você recebeu o nome da sua avó Judith como herança e, coincidentemente, do que usamos para definir o que é precioso. O infinito, ainda que transitório, está também em você, no seu nome próprio. Mesmo com sua partida prematura, o seu brilho, de uma joia rara, permanece e ilumina o chão que pisamos juntos, o ar que respiramos ao mesmo tempo, as lágrimas que nos escorreram no rosto nos momentos de emoção, o gosto dos vinhos que tomamos para brindar a vida, o cheiro que você deixou em toda parte, o toque na sua pele que sentirei eternamente.

Você teve a coragem de ser natureza, transitória, infinita.

Seu último aniversário, algumas semanas antes da sua partida, choramos todos, olhando para você e não te vendo mais ali. O brilho dos seus olhos já não era o mesmo. Cantei pra você. Cantamos juntos, em sua homenagem, para que além do horizonte pudesse existir um lugar infinito, bonito e tranquilo pra gente se amar.

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